Com orçamento enxuto, o longa conta a história de três amigos que moram no mesmo prédio, vivendo conflitos da classe média paulistana. “Foi um processo bem intenso, porque tinha muitas referências pessoais. E a equipe foi toda de amigos. Estávamos em casa falando da nossa própria vida”, relatou a diretora em entrevista à repórter Marilia Neustein. Além da escolha pela participação de amigos, como Thiago Petit e Ana Cañas, a cineasta se deu conta, ao longo do processo, de que toda sua equipe criativa era formada de mulheres.
Nesta véspera do Dia Internacional da Mulher, a militante da causa faz uma comparação oportuna: “Aconteceu o mesmo que se dá com os diretores: eles chamam os brothers deles. Eu fiz o mesmo. Só que no meu caso são “manas”, as minhas parceiras e amigas. Que também são grandes profissionais”, diz.
A questão de gênero no audiovisual, aliás, é uma grande preocupação da cineasta, que participa de movimentos a favor de maior representatividade das mulheres no mercado. “Quando uma mulher lidera ou escreve um projeto, há personagens femininas fortes e questões que não são só sobre homens”, afirma. “É por isso que batemos o pé sobre a liderança do projeto. Porque é a liderança que vai trazer essa multiplicidade”. A seguir, os principais trechos de entrevista.
Por que contar essa história, uma história de amizade, e como surgiu a ideia do filme?
Acho que a resposta vem da contemporaneidade. Creio que os filmes, assim como os livros, têm o mérito de ser um retrato do tempo. Talvez o Amores Urbanos seja o retrato dessa geração urbana. Até arrisco dizer que é o retrato de um estilo de vida das grandes cidades brasileiras. O filme fala sobre libertação na forma de se relacionar. Os personagens brigam muito mas estão sempre juntos. Acho que isso é o reflexo também de uma certa latinidade. As vidas urbanas se conectam mundo afora, mas eu vejo essa turma que é retratada no filme em muitas cidades latino-americanas. Agora, por que contar essa história? Acho que tem algo de autoficção. O filme não é autobiográfico, mas algumas falas foram literalmente extraídas da minha vida e da vida dos meus amigos.
Muito se fala da falta de filmes brasileiros que retratem a classe média. Amores Urbanos mostra a complexidade desse universo?
Acho que sim. O filme foi pré-selecionado para alguns festivais que disseram que o longa não representava o Brasil, porque não é isso que eles esperam do universo latino-americano. Eu entendi. Penso que temos que retratar o Brasil inteiro em todos os seus aspectos: a vida rural brasileira, a periferia, e todos os grupos que não têm voz. O que me dói ainda é que o filme retratado na periferia não seja feito por um autor periférico, por exemplo. Eu ainda acho que é um discurso muito paternal, porque quem faz cinema, quem vai ao cinema, quem escreve sobre cinema, é a turma que está no Amores Urbanos. É essa turma.
Acha que a produção deveria ser mais democratizada?
Existem mil movimentos, o cinema na periferia, o cinema negro, as mulheres negras autoras. Eu acho que vai ser legal quando os filmes brasileiros retratarem um Brasil e forem feitos e produzidos, idealizados por esse Brasil múltiplo, e não um cenário onde 84% dos longas é escrito e dirigido por homens héteros brancos.
Como diretora, você teve alguma transformação durante o filme? Alguma reflexão?
O processo que seguimos foi, desde o começo do roteiro, muito intenso porque tinha muitas referências pessoais. E a equipe era toda composta de amigos. Estávamos em casa falando da nossa própria vida. O mais desafiador, na verdade, foi filmar em 17 dias com um orçamento muito enxuto.
São Paulo tem um papel importante no filme, não é?
Tem. Mesmo sem ter nenhum plano geral, revelamos a cidade. São Paulo está na forma como as pessoas falam. Nessa lógica louca na qual se você não tem um bom emprego, está fracassado. Se namora “uma gata” tem que mostrar para os outros. Acho que têm muitas coisas negativas na lógica de São Paulo. De outro lado, a cidade dá essa possibilidade de ser anônimo. Você pode viver em uma cidade ultraconservadora ou em uma das cidades mais libertárias. Tudo isso na mesma SP. Amores Urbanos está nessa variedade de pessoas…
A equipe de criação do filme é quase toda composta por mulheres. Foi uma opção sua?
Não fiz questão. E isso é que foi bonito. Só me dei conta quando a equipe já estava formada. Aconteceu o mesmo que acontece com os homens diretores: eles chamam os brothers deles. Eu fiz o mesmo, só que no meu caso são “manas”, não são brothers. Chamei as minhas parceiras, minhas amigas. Que também são grandes profissionais. Quando olhei em volta era diretora de fotografia, técnica de som, montadora, diretora de arte, figurinista. Era só “a mulherada”. No meu set de criação tinha um único homem – o diretor de produção – e isso gerava muita piada (risos). É claro que eu tenho amigos homens. Mas existe também uma associação, essa afinidade de gênero – que no movimento feminista chamamos de sororidade. Todos os amigos diretores que conheço escolhem sempre uma equipe só de homens e nunca foram questionados por isso.
Você participa de um grupo em prol das mulheres no audiovisual.
Sim. A SPCine convocou uma reunião das mulheres do audiovisual de SP e disso surgiu um grupo no Facebook. Hoje são mais de duas mil mulheres no Brasil. Somos uma rede de contatos, estamos levantando pesquisa sobre a situação da mulher no audiovisual, um banco de dados com todos os nossos nomes e funções, etc. Mas é um grupo apolítico, bem heterogêneo.
Nesse contexto, como você vê a representatividade da mulher nesse mercado?
Questiono o porquê de 84% dos filmes brasileiros serem liderados, escritos e dirigidos por homens brancos. Existem muitas mulheres, diretoras consagradas, produtoras consagradas que não entram nessas estatísticas. Acho muitíssimo grave que não haja filmes lançados por mulheres negras no Brasil, por exemplo. Não está certo. Isso não é um problema só das mulheres negras, isso é um problema de todos nós. E eu ouvi de um amigo: “Não sei por que você está tão preocupada, você é mulher e dirige filmes”. Eu respondi: “Talvez porque o mundo não gira em torno do meu umbiguinho”.
Estamos vivendo essa primavera do feminismo. O que acha disso?
É engraçado porque fui criada por uma mãe feminista, eu vivi isso. Ela sempre me falou da Frida Khalo, Rosa Luxemburgo, Olga Benário, Simone de Beauvoir. As mulheres fortes sempre povoaram a minha construção como pessoa. E acho maravilhoso que essa reflexão esteja voltando. Sempre digo aos ativistas do movimento LGBT e do movimento negro que, às vezes, há uma impressão de que o mundo está muito reacionário. Entretanto, o reacionário só existe porque é uma reação à nossa atitude de estarmos botando as asinhas de fora.
Outra questão importante levantada pelas mulheres no cinema não é apenas o número de lideranças no audiovisual, mas também a forma como as personagens mulheres são retratadas nos filmes.
Existe até um teste que indaga, nos filmes dirigidos por homens, quantas personagens mulheres existem e dessas quantas têm fala, e quantas falas não são sobre homens. O resultado é realmente impressionante. Quando uma mulher lidera ou escreve um projeto audiovisual, existem personagens femininas fortes e existem questões na vida delas que não são só sobre homens. E é natural escrever sobre elas. Por isso eu sempre repito que o autor periférico precisa ter voz. A autora negra precisa ter voz. Porque automaticamente o retrato aparece na tela. É por isso que batemos o pé sobre a liderança do projeto. Porque é a liderança que vai trazer essa multiplicidade.
A atriz Viola Davis falou sobre isso no seu discurso do Emmy. Sobre a oportunidade da mulher negra no audiovisual americano.
Achei muito interessante, no discurso dela, quando ela disse que você não pode ganhar um prêmio por um papel que não existe. Essa é a grande questão. Você não pode atuar em um filme que não existe, ou dirigir um roteiro que não existe. É importante ter mais mulheres escrevendo, mais mulheres negras escrevendo.
Você é mãe de uma menina. Pensa nisso ao criar sua filha também?
Muito. Penso nisso tudo. Eu acho que é como eu fui criada, na verdade – que é não colocar o gênero como um empecilho.