LÍDERES DE GANGUES VOLTAM À FAVELA NO HAITI
Autor(es): Agencia O Globo/Gilberto Scofield Jr.
O Globo - 18/01/2010
A reorganização das gangues criminosas em Cité Soleil - a maior favela do Haiti, com cerca de 300 mil moradores vivendo em extrema pobreza, amontoados em ruelas de esgoto a céu aberto - virou o grande desafio aos esforços de estabilização do país e ao projeto de reconstrução após o terremoto. Os cerca de três mil criminosos que fugiram da Penitenciária Nacional após os tremores se armaram com os fuzis de guardas mortos pelos desabamentos, renderam os que sobreviveram e voltaram a se refugiar em Cité Soleil, onde começam a se reagrupar e já ameaçam os moradores.
A violência explodiu também nas ruas da capital. Com a demora da chegada de alimentos e remédios, os saques se tornam cada vez mais generalizados. Assassinatos e linchamentos foram registrados ontem. Um homem foi queimado e outros dois mortos a tiros.
Segundo o relato de moradores de Cité Soleil (muitos não se identificam temendo represálias), as gangues atuam principalmente à noite, quando invadem barracos e casas, batem em seus ocupantes e roubam seus poucos bens mais valiosos. De dia, andam anônimos pelas ruelas (onde dormem moradores que temem a queda de seus barracos), sem armas, para não chamarem a atenção das forças militares de segurança.
O repórter do GLOBO esteve ontem durante mais de uma hora dentro da favela, e Dorsaisvil Ferdnand, presidente da Organização Popular para a Mudança de Drouillas (um dos maiores sub-bairros de Cité Soleil), só concordou em conversar com o jornal dentro da sede da organização, com medo que uma das pessoas que frequentemente se aglomeram em volta de equipes de reportagem fosse um bandido anônimo.
- Estamos desesperados porque a pacificação está ameaçada pelos bandidos que estão refugiados aqui em casas de parentes e amigos. Eles estão tentando assustar a população arrombando casas à noite, batendo nas pessoas e roubando suas coisas. Voltamos a viver com medo e precisamos urgentemente que a Polícia da ONU ou do Haiti venha para cá antes que seja tarde demais - disse Ferdnand. - A favela sempre foi um reduto das gangues criminosas que historicamente assustaram Porto Príncipe. Isso não pode voltar a acontecer.
Um dos lugares mais violentos
O desespero de Ferdnand tem explicação. Cité Soleil era considerada um dos lugares mais violentos do mundo até que, em 2006, tropas da ONU e da polícia haitiana, lideradas pelo Exército brasileiro, invadiram a favela, prenderam ou mataram a maioria dos líderes das gangues e pacificaram a área, levando serviços públicos com o apoio do presidente René Préval, eleito naquele ano.
Apesar de algumas críticas de entidades de direitos humanos, que acusaram a ação militar de ter matado ou ferido tanto bandidos quanto inocentes simpatizantes do deposto ditador Jean-Bertrand Aristide (que tinha na região um seus maiores bastiões), a estratégia foi considerada uma das grandes vitórias da Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (Minustah), no geral, e das tropas brasileiras, em particular.
O temor dos moradores de Cité Soleil - um local que também foi afetado pelo terremoto, mas em menores proporções do que outros bairros - é que a comunidade, que hoje dorme nas ruas fétidas da favela em meio a muito lixo e esgoto, passe a sofrer também a violência das gangues que se reagrupam.
- Tenho medo que Cité Soleil volte a ser o que era antes da ocupação - afirmou Joseph Stenio, morador local.
O general Floriano Peixoto Vieira Neto, comandante das tropas de paz da ONU no Haiti, afirmou que situação de segurança em Porto Príncipe não fugiu ao controle, mas admitiu que as autoridades haitianas e as Nações Unidas não podem deixar que o reagrupamento de gangues ou mesmo a insatisfação da população haitiana com a ajuda oficial se transformem em novos focos de violência na capital. Ele disse que determinou a intensificação nas ações policiais e de segurança das forças militares dos 17 países sob seu comando na capital e pediu o reforço de 200 soldados das tropas argentinas e uruguaias que atuavam em outras cidades no interior do Haiti para garantir a segurança na capital.
- Não há descontrole sobre a segurança no Haiti, mas é natural que, diante de uma catástrofe destas proporções, o nível de tensão aumente. Todos os dias me reúno com os chefes militares de todos os países, meu Estado-Maior, fazemos diagnósticos da situação e traçamos estratégias para todas as áreas - disse o general.
Apesar de reconhecer que os criminosos que escaparam da cadeia representam um sério risco à segurança pública, o comandante da Polícia Nacional do Haiti, Mario Andresol, tem opinião similar à do brasileiro.
- Minha mensagem a todos esses bandidos que estão se aproveitando da situação é que vamos prendê-los da mesma forma que fizemos antes - disse. - Estamos tomando as medidas apropriadas para combater esses criminosos.
O presidente do Haiti, René Préval, disse que os 3,5 mil militares americanos que estão começando a chegar à cidade ajudarão as tropas de paz da ONU e a polícia local a garantir a segurança.
- Temos 2 mil policiais em Porto Príncipe seriamente afetados e 3 mil bandidos fugidos da cadeia - resumiu o presidente. - Isso dá uma ideia de quão mal está a situação.
Linchamentos e assassinatos de supostos ladrões foram registrados ontem nas ruas de Porto Príncipe. Dois foram mortos a tiros. Um outro foi queimado.
- Os haitianos estão fazendo justiça com as próprias mãos - afirmou o professor Eddy Toussaint, em meio à multidão que observava um dos corpos. - Não há cadeias, os criminosos estão livres, não há autoridades no controle.
Com as pessoas cada vez mais desesperadas e na ausência total de autoridade, saqueadores invadem lojas destruídas em busca de comida e qualquer outro bem que possam encontrar.
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