Da Revista Veja
Diego Escosteguy e Otávio Cabral
Luiz Inácio Lula da Silva, o mais improvável dos presidentes brasileiros, já entrou na história antes de sair da vida. Lula, o filho do sertão pernambucano que comia feijão com farinha sob o árido sol de Garanhuns antes de se tornar engraxate nas ruas do Sul Maravilha, venceu. Dos sapatos chegou à fábrica de parafusos; do torno saltou para a avenida larga, longa e generosa da vida sindical, que o conduziu ao Partido dos Trabalhadores e à Presidência da República. Instalado no poder, Lula amargou escândalos, viu a dissolução ética de seu partido, observou de mãos atadas uma recessão econômica de quase dois anos que por pouco não paralisou seu governo. Mas, como não há males que durem, os escândalos foram varridos para debaixo do tapete e a recessão inicial cedeu, abrindo caminho para o crescimento econômico e a consequente onda de boa vontade com os governantes que ele traz. Com sua genuína devoção aos mais pobres e um carisma fenomenal, Lula chega às portas do seu último ano de governo com 80% de aprovação. A vida de Lula, como se vê, parece coisa de filme.
Lula, o Filho do Brasil, a cinebiografia que estreará nos cinemas no começo do próximo ano, é o primeiro filme de ficção sobre a vida do presidente. A LC Barreto, responsável pelo projeto, enviará 500 cópias ao circuito comercial – o maior lançamento da história do cinema brasileiro. As centrais sindicais, como a CUT e a Força Sindical, planejam projetar a fita para espectadores das áreas mais pobres do país. Os trabalhadores sindicalizados poderão comprar ingressos subsidiados a 5 reais. As estimativas mais conservadoras indicam que, somente nas salas comerciais, 5 milhões de pessoas assistirão ao longa. É pouco diante do que se seguirá. O DVD do filme será lançado no dia 1º de maio, feriado do trabalhador. Em seguida, a Rede Globo levará a fita ao ar, editada como uma minissérie. Ao final, se essa ambiciosa estratégia de distribuição funcionar, Luiz Inácio, o homem que fez história, dará um salto rumo a Luiz Inácio, o mito. Esse mito paira acima do bem e do mal, mas estará dizendo o que é certo e o que é errado na campanha eleitoral de 2010. Por fazer parte de um projeto de beatificação do personagem com vista a servir de propaganda eleitoral disfarçada de entretenimento na próxima campanha, Lula, o Filho do Brasil parece coisa de marqueteiro.
Antes mesmo de ser lançado em rede comercial, o filme está agitando os bastidores da política. Assessores envolvidos na campanha presidencial de Dilma Rousseff, a candidata escolhida pelo governo para suceder Lula, veem na película um poderoso instrumento eleitoral, capaz de fazer diferença na luta petista para se manter no poder. O otimismo não é gratuito. Os estrategistas do Planalto receberam pesquisas que demonstram a capacidade de transferência de votos do presidente Lula. Ou seja, se Lula mantiver a popularidade em alta, Dilma será largamente beneficiada. A população faz uma ótima avaliação de Lula e se dispõe a votar em um candidato que mantenha os principais programas do petista. Lula é o maior cabo eleitoral do país. Quase 20% dos eleitores votam em seu candidato, independentemente de quem seja (veja o quadro). A grande dificuldade de Lula é que boa parte do eleitorado não conhece Dilma nem a associa ao presidente. Por isso ela segue a léguas de distância de José Serra, do PSDB, o líder das pesquisas. Para reverter esse quadro, Lula conta com o crescimento da economia, que pode atingir até 5% do PIB em 2010, e a consequente perspectiva de que os eleitores sigam sua orientação e votem em quem ele indicar. O filme é visto como um fator estimulante nesse processo de transferência.
Celso Junior/AE
AVANT-PREMIÈRE
A primeira-dama Marisa Letícia e as atrizes do filme: o lançamento em Brasília foi disputado, mas os aplausos do público foram apenas discretos
Na terça-feira da semana passada, VEJA esteve na primeira exibição pública do filme, que abriu o tradicional Festival de Cinema de Brasília. Numa demonstração da comoção que o longa deve causar, teve gente, de político a porteiro, que implorava por convite na frente do Teatro Nacional, onde aconteceu a projeção. Havia cerca de 1 400 pessoas no teatro, entre ministros, deputados, senadores, sindicalistas, burocratas do governo e jornalistas. Marisa Letícia, a primeira-dama, compareceu ao evento e foi assediada como celebridade. Havia gente em cadeiras improvisadas, gente nas escadas, gente no chão. Lula, o Filho do Brasil é uma novela com duas horas de duração. Em matéria de lágrimas, funciona. Em matéria de apuro estético, constrange. Como obra de arte, portanto, é uma irretocável peça de propaganda. Não poderia ser diferente: é um projeto concebido exatamente com esse propósito. Dirigido por Fábio Barreto, o filme inspira-se na biografia homônima – e oficial – do presidente, escrita pela jornalista Denise Paraná e editada pela Fundação Perseu Abramo, ligada ao PT.
Se como cinema o filme é fraco, como propaganda e negócio tem tudo para dar certo. O apelo emocional da obra pode agradar ao público que chorou com 2 Filhos de Francisco, a história de superação dos irmãos Zezé di Camargo e Luciano. Há elementos em abundância para provocar chororô – nisso se percebe a maestria de Fábio Barreto, que apresenta ao espectador um Lula plano, sem meios-tons, cujas carnes se tornam reais apenas no sofrimento da perda da mulher grávida, ou no êxtase ao comandar as massas nos comícios sindicais. Qualquer sentimento que pudesse torná-lo mais humano, como a raiva pelo abandono do pai ou a inveja de quem tinha o que ele desejava, perde-se na produção artificial do mito, do messias que sofre, persevera e está destinado a conduzir o povo até a terra prometida (veja o quadro). O Lula de Fábio Barreto não é somente um herói sem defeitos; é um herói iluminado. Barreto faz de tudo para mostrá-lo assim, inclusive omitindo ou atenuando a verdadeira história do presidente (veja o quadro). O Lula de Barreto usa inverossímeis frases de efeito ("Homem não bate em mulher!") para impedir que o pai bata na mãe ou para desafiar a polícia autoritária do regime militar ("Cadeia foi feita para homem") – embora na vida real algumas dessas passagens jamais tenham ocorrido.
Fotos Celso Junior/ AE; Dida Sampaio/ AE
EFEITOS ESPECIAIS
O ministro Franklin Martins acredita que a mitificação precoce de Lula pode ajudar a campanha de Dilma Rousseff
"Queria fazer um melodrama", admite o diretor. O recorte temporal do filme é a primeira prova disso. O roteiro percorre a infância miserável de Lula em Garanhuns, acompanha a trajetória dolorosa do menino que é obrigado a trabalhar para comer e avança até o mergulho dele no mundo sindical. Mas para por aí. Tudo o que aconteceu na vida do presidente entre o começo dos anos 80 e a vitória em 2002 ficou de fora: a criação do PT, a atuação como deputado na Constituinte de 1988, as cinco campanhas presidenciais. Qualquer episódio que pudesse causar constrangimento ou contrariar a narrativa hagiográfica da vida de Lula sumiu da história. Barreto suaviza algumas características notórias do presidente e omite algumas passagens pouco edificadoras. Essas opções dramáticas servem para construir o mito, que sempre precisa de um passado idealizado, idílico, no qual o futuro se desenhe glorioso, rumo ao paraíso terreno – uma mentalidade que prosperou com força na ideia do "país do futuro", no decorrer do regime militar. O clímax triunfalista do filme, quando Lula se ergue sobre as massas, reforça precisamente esse projeto autoritário.
Os bastidores do projeto revelam que essas opções não foram meramente artísticas. Houve estreita colaboração entre os produtores do filme e a equipe de Lula. Em 2003, logo após adquirir os direitos da biografia oficial do presidente, Luiz Carlos Barreto obteve o aval do presidente para tocar o longa. Políticos próximos a Lula afirmam, sob a condição de anonimato, que o ministro da Comunicação Social, Franklin Martins, teve influência decisiva na definição do esquema de captação de recursos. Antes da edição final, Barreto viajou para Brasília pelo menos duas vezes para exibir o filme a políticos próximos ao Planalto. A primeira sessão aconteceu há três meses. Participaram ministros, como Paulo Bernardo, do Planejamento, e Alexandre Padilha, das Relações Institucionais, e deputados, como João Paulo Cunha e Ricardo Berzoini, da cúpula do PT. Os petistas, depois da exibição, acharam as músicas incidentais muito pouco dramáticas e sugeriram acrescentar músicas populares, que seriam mais facilmente assimiláveis – no que foram prontamente atendidos.
Fotos Beto Barata/AE e Alan Marques/Folha Imagem
SONOPLASTIA
O ministro Paulo Bernardo (à esq.) e o presidente do PT, Ricardo Berzoini: sugestões até para a trilha sonora do filme
Para minimizar a aparência de uma obra chapa-branca, os produtores foram orientados a não aceitar dinheiro público nem incentivos fiscais. Sem muito esforço, captaram patrocínios de dezoito empresas (veja o quadro abaixo), num total de 12 milhões de reais, uma fortuna para os padrões cinematográficos nacionais. Entre as companhias doadoras, há as que têm negócios diretos com o governo, as que têm interesses no governo e as que são controladas por instituições ligadas ao governo... Ouvidas por VEJA, as empresas explicaram que esse tipo de doação faz parte da política de incentivos culturais que cada uma delas desenvolve. Nada a ver com o perfil do biografado. O diretor de uma empreiteira, no entanto, contou a VEJA, reservadamente, o que de fato os atraiu. Segundo ele, os produtores deixaram claro que se tratava de um filme oficial, de interesse e "autorizado" pelo presidente da República. As empresas desembolsaram quantias que variaram de 500 000 a 1 milhão de reais. "Que empresa não iria querer participar? Isso ajuda a abrir várias portas no futuro. Ou, pelo menos, a não fechá-las", admite o funcionário.
A construção de um mito dentro de um regime democrático é coisa raríssima. Na política, o mito costuma surgir em estados ditatoriais, nos quais o exercício da crítica é proibido. Foi o caso de Stalin, na União Soviética, ou de Benito Mussolini, na Itália. Nesses países, assim como em Cuba de Fidel Castro ou na Alemanha de Hitler, a arte – e, em particular, o cinema – foi controlada pelo estado totalitário, numa tentativa de moldar o imaginário social em torno de um projeto de poder. O Brasil, claro, não se encaixa nessa categoria. Diz o cientista político Octaciano Nogueira, da Universidade de Brasília: "No Brasil, a criação de um mito dentro de um regime democrático é uma situação inédita. Desde Getúlio Vargas não há um fascínio tão perigoso com um líder carismático". Lula já entrou na história, mas é cedo para dizer em qual categoria – se na dos líderes populistas ou na dos estadistas.
sábado, 21 de novembro de 2009
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